Correspondente do diário inglês The Guardian, presente na Bolívia em 1967, Richard Gott testemunhou a campanha guerrilheira de Che e denunciou a participação da CIA no assassinato do revolucionário
Claudia Jardim
de Caracas (Venezuela)
EM 8 DE outubro de 1967, quando o Exército boliviano capturou Che Guevara, para executá-lo um dia depois, Richard Gott, à época correspondente do diário inglês The Guardian, foi um dos poucos jornalistas a presenciar os fatos relacionados com a morte do guerrilheiro.
Gott, que havia viajado à Bolívia para reportar a campanha guerrilheira de Guevara, também foi testemunha da participação da CIA (agência estadunidense de inteligência) no operativo de captura e assassinato de Che.
Sobre Félix Rodríguez, um dos principais agentes da CIA nessa operação, Richard Gott escreveu dia 10 de outubro de 1967: “Era um homem muito nervoso e olhava furioso cada vez que uma câmera se dirigia a ele. Ele sabia que eu sabia quem ele era, e sabia também que ele não deveria estar ali”.
Gott viveu na América Latina durante décadas e conta quem era o Che que hoje se converteu em um símbolo pop. “Ele levou os poemas de Pablo Neruda na mochila, mas sua música favorita era o som das metralhadoras.” Nos 40 anos da morte do guerrilheiro, Gott concedeu essa entrevista exclusiva ao Brasil de Fato.
Brasil de Fato – Como o senhor se aproximou da história que culminou no fim da guerrilha e na execução de Che Guevara?
Richard Gott – Guevara, em seu último artigo, publicado em 1967, pediu aos revolucionários para que criassem “dois, três, vários Vietnãs”. Decidi sair da minha base em Santiago do Chile e passei o mês de agosto viajando pela Bolívia, tratando de descobrir se este país estava pronto para ser “o próximo Vietnã”. Regressei à Bolívia no final de setembro. Me reuni brevemente com alguns oficiais bolivianos em Vallegrande, quando me informaram sobre uma iminente captura de Guevara. Também visitei um acampamento que os EUA mantinham fora de Santa Cruz para treinar os soldados bolivianos com técnicas antiguerrilheiras.
Quando soube da captura de Che?
Foi na tarde do domingo, 8 de outubro, que um oficial estadunidense me informou que Guevara havia sido capturado em La Higuera. Dirigi durante toda a noite até Vallegrande e cheguei na manhã de segunda-feira bem cedo no local para onde seria levado Guevara. Enquanto esperava, me chamou a atenção a presença de um homem vestido com roupa militar. Evidentemente não era um boliviano. Mais tarde, os oficiais bolivianos me explicaram que se tratava de um assessor da CIA. Finalmente, às cinco da tarde, chegou o helicóptero que trazia Guevara. Seu corpo estava em uma maca que tinha sido amarrada junto à base de aterrissagem da aeronave. Era evidente que o agente da CIA (Félix Rodríguez) se encarregava de todos os procedimentos. Falava inglês e espanhol fluentes, e estava visivelmente incomodado porque ele sabia que eu o havia identificado.
Como foi o momento em que os militares bolivianos apresentaram o corpo de Che Guevara?
Pouco tempo depois foi possível ver o corpo de Guevara em uma das lavanderias do hospital local. Neste momento eu estava bastante apreensivo. O fato de haver identificado o agente da CIA me fez temer que ele pudesse me prender. Permaneci perto do corpo de Guevara observando aquela pequena multidão de soldados, freiras e camponeses que começavam a chegar. Havia alguns jornalistas presentes, mas eu era a única pessoa naquele lugar que já tinha visto Guevara com vida, e podia certificar que verdadeiramente aquele corpo era do Che. Eu o havia conhecido em Havana quatro anos antes, em 1963. A maioria dos correspondentes estrangeiros chegaram no dia seguinte, quando o corpo de Guevara já havia sido limpo e as famosas fotografi as foram tiradas. Durante a noite, tive que viajar a Santa Cruz para enviar minha reportagem. No caminho, escutei o serviço da BBC World sobre a notícia de que Guevara havia sido capturado e morto. Foi neste momento que me dei conta do desastre e da tragédia que eu havia testemunhado. Até aquele momento, eu estava excitado com a perspectiva do “furo” jornalístico. A partir de então, passei a refletir sobre as implicações políticas relacionadas à morte do Che.
Neste período os EUA negavam qualquer participação no combate à guerrilha boliviana. Como reagiram os estadunidenses à publicação da sua reportagem que denunciava a participação da CIA?
Os EUA ignoraram a reportagem. Conforme um acordo de intercâmbio, o jornal Washington Post poderia utilizar o material impresso no The Guardian e vice-versa. Nesta ocasião, eles ignoraram minha história. O New York Times publicou uma extensa matéria da Reuters em que todas as referências sobre a presença da CIA haviam sido suprimidas. A história não foi reconhecida, nem mencionada, pela grande imprensa estadunidense até um ano depois.
Durante o tempo em que percorreu a Bolívia, como o senhor avaliou a situação da campanha guerrilheira de Che entre os bolivianos?
Viajei pela Bolívia em 1967, no período final da campanha guerrilheira de Guevara. Eu sabia que naquele momento, as forças de Guevara estavam divididas e sua maioria estava isolada do mundo exterior. Grande parte dos simpatizantes da guerrilha nas cidades haviam sido detidos e as minas de estanho do Altiplano – a principal área de mobilização da esquerda política – estavam sob toque de recolher. Ao mesmo tempo, muitos dos benefícios conquistados pelos camponeses depois da reforma agrária de 1953 haviam desaparecido. Em algumas regiões, os velhos latifundiários haviam retomado suas propriedades.
Quem era o Che e de que maneira se transformou em uma figura romântica, um símbolo pop?
Guevara era, antes de mais nada, um revolucionário de jornada completa. Ele levou os poemas de Pablo Neruda na mochila, mas sua música favorita era o som das metralhadoras. Diferentemente dos teóricos socialistas mais recentes, Guevara depositou sua confiança em indivíduos, mais do que nas massas. Após sua morte, Guevara se converteu em uma figura revolucionária de usos múltiplos, um símbolo de uma rebelião adolescente. Ele tem sido neutralizado na figura de um ídolo pop, típico da degradação cultural das sociedades ocidentais. Na vida real era um revolucionário genuíno que acreditava na necessidade de transformar a sociedade e pensava que isso poderia ocorrer por meio da guerra de guerrilhas.
Quarenta anos depois, o Che passou a ser uma das referências de governos latinoamericanos como a Venezuela, Equador e Bolívia. O que isso representa?
Guevara foi parte e partícipe da revolução cubana de 1959, o acontecimento mais significativo da história latino-americana desde as guerras de independência do século 19. Dessa maneira, Guevara se converteu em um exemplo permanente da possibilidade de transformação radical. A América Latina se inclina à esquerda no início do século 21, e é inevitável que sua bandeira revolucionária outra vez seja reconhecida pelos governos que buscam a transformação de seus países. Que o Che seja homenageado na Bolívia de hoje, 40 anos depois, sem dúvida, é um motivo de alegria.
Claudia Jardim
de Caracas (Venezuela)
EM 8 DE outubro de 1967, quando o Exército boliviano capturou Che Guevara, para executá-lo um dia depois, Richard Gott, à época correspondente do diário inglês The Guardian, foi um dos poucos jornalistas a presenciar os fatos relacionados com a morte do guerrilheiro.
Gott, que havia viajado à Bolívia para reportar a campanha guerrilheira de Guevara, também foi testemunha da participação da CIA (agência estadunidense de inteligência) no operativo de captura e assassinato de Che.
Sobre Félix Rodríguez, um dos principais agentes da CIA nessa operação, Richard Gott escreveu dia 10 de outubro de 1967: “Era um homem muito nervoso e olhava furioso cada vez que uma câmera se dirigia a ele. Ele sabia que eu sabia quem ele era, e sabia também que ele não deveria estar ali”.
Gott viveu na América Latina durante décadas e conta quem era o Che que hoje se converteu em um símbolo pop. “Ele levou os poemas de Pablo Neruda na mochila, mas sua música favorita era o som das metralhadoras.” Nos 40 anos da morte do guerrilheiro, Gott concedeu essa entrevista exclusiva ao Brasil de Fato.
Brasil de Fato – Como o senhor se aproximou da história que culminou no fim da guerrilha e na execução de Che Guevara?
Richard Gott – Guevara, em seu último artigo, publicado em 1967, pediu aos revolucionários para que criassem “dois, três, vários Vietnãs”. Decidi sair da minha base em Santiago do Chile e passei o mês de agosto viajando pela Bolívia, tratando de descobrir se este país estava pronto para ser “o próximo Vietnã”. Regressei à Bolívia no final de setembro. Me reuni brevemente com alguns oficiais bolivianos em Vallegrande, quando me informaram sobre uma iminente captura de Guevara. Também visitei um acampamento que os EUA mantinham fora de Santa Cruz para treinar os soldados bolivianos com técnicas antiguerrilheiras.
Quando soube da captura de Che?
Foi na tarde do domingo, 8 de outubro, que um oficial estadunidense me informou que Guevara havia sido capturado em La Higuera. Dirigi durante toda a noite até Vallegrande e cheguei na manhã de segunda-feira bem cedo no local para onde seria levado Guevara. Enquanto esperava, me chamou a atenção a presença de um homem vestido com roupa militar. Evidentemente não era um boliviano. Mais tarde, os oficiais bolivianos me explicaram que se tratava de um assessor da CIA. Finalmente, às cinco da tarde, chegou o helicóptero que trazia Guevara. Seu corpo estava em uma maca que tinha sido amarrada junto à base de aterrissagem da aeronave. Era evidente que o agente da CIA (Félix Rodríguez) se encarregava de todos os procedimentos. Falava inglês e espanhol fluentes, e estava visivelmente incomodado porque ele sabia que eu o havia identificado.
Como foi o momento em que os militares bolivianos apresentaram o corpo de Che Guevara?
Pouco tempo depois foi possível ver o corpo de Guevara em uma das lavanderias do hospital local. Neste momento eu estava bastante apreensivo. O fato de haver identificado o agente da CIA me fez temer que ele pudesse me prender. Permaneci perto do corpo de Guevara observando aquela pequena multidão de soldados, freiras e camponeses que começavam a chegar. Havia alguns jornalistas presentes, mas eu era a única pessoa naquele lugar que já tinha visto Guevara com vida, e podia certificar que verdadeiramente aquele corpo era do Che. Eu o havia conhecido em Havana quatro anos antes, em 1963. A maioria dos correspondentes estrangeiros chegaram no dia seguinte, quando o corpo de Guevara já havia sido limpo e as famosas fotografi as foram tiradas. Durante a noite, tive que viajar a Santa Cruz para enviar minha reportagem. No caminho, escutei o serviço da BBC World sobre a notícia de que Guevara havia sido capturado e morto. Foi neste momento que me dei conta do desastre e da tragédia que eu havia testemunhado. Até aquele momento, eu estava excitado com a perspectiva do “furo” jornalístico. A partir de então, passei a refletir sobre as implicações políticas relacionadas à morte do Che.
Neste período os EUA negavam qualquer participação no combate à guerrilha boliviana. Como reagiram os estadunidenses à publicação da sua reportagem que denunciava a participação da CIA?
Os EUA ignoraram a reportagem. Conforme um acordo de intercâmbio, o jornal Washington Post poderia utilizar o material impresso no The Guardian e vice-versa. Nesta ocasião, eles ignoraram minha história. O New York Times publicou uma extensa matéria da Reuters em que todas as referências sobre a presença da CIA haviam sido suprimidas. A história não foi reconhecida, nem mencionada, pela grande imprensa estadunidense até um ano depois.
Durante o tempo em que percorreu a Bolívia, como o senhor avaliou a situação da campanha guerrilheira de Che entre os bolivianos?
Viajei pela Bolívia em 1967, no período final da campanha guerrilheira de Guevara. Eu sabia que naquele momento, as forças de Guevara estavam divididas e sua maioria estava isolada do mundo exterior. Grande parte dos simpatizantes da guerrilha nas cidades haviam sido detidos e as minas de estanho do Altiplano – a principal área de mobilização da esquerda política – estavam sob toque de recolher. Ao mesmo tempo, muitos dos benefícios conquistados pelos camponeses depois da reforma agrária de 1953 haviam desaparecido. Em algumas regiões, os velhos latifundiários haviam retomado suas propriedades.
Quem era o Che e de que maneira se transformou em uma figura romântica, um símbolo pop?
Guevara era, antes de mais nada, um revolucionário de jornada completa. Ele levou os poemas de Pablo Neruda na mochila, mas sua música favorita era o som das metralhadoras. Diferentemente dos teóricos socialistas mais recentes, Guevara depositou sua confiança em indivíduos, mais do que nas massas. Após sua morte, Guevara se converteu em uma figura revolucionária de usos múltiplos, um símbolo de uma rebelião adolescente. Ele tem sido neutralizado na figura de um ídolo pop, típico da degradação cultural das sociedades ocidentais. Na vida real era um revolucionário genuíno que acreditava na necessidade de transformar a sociedade e pensava que isso poderia ocorrer por meio da guerra de guerrilhas.
Quarenta anos depois, o Che passou a ser uma das referências de governos latinoamericanos como a Venezuela, Equador e Bolívia. O que isso representa?
Guevara foi parte e partícipe da revolução cubana de 1959, o acontecimento mais significativo da história latino-americana desde as guerras de independência do século 19. Dessa maneira, Guevara se converteu em um exemplo permanente da possibilidade de transformação radical. A América Latina se inclina à esquerda no início do século 21, e é inevitável que sua bandeira revolucionária outra vez seja reconhecida pelos governos que buscam a transformação de seus países. Que o Che seja homenageado na Bolívia de hoje, 40 anos depois, sem dúvida, é um motivo de alegria.
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