BLOQUE ZONA LIVRE em Construção

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segunda-feira, 20 de outubro de 2008

PASSAGENS DA GUERRA REVOLUCIONÁRIA: Uma Entrevista Famosa

Contada por Cmte. Ernesto Che Guevara

Em meados de abril de 1957, voltávamos com nosso exército em treinamento às regiões de Palma Mocha, nos arredores do Turquino. Naquela época nossos mais valiosos homens para a luta na montanha eram os de extração rural.

No dia 23 de abril, o jornalista Bob Taber, e um operador cinematográfico chegavam a nossa presença; junto a eles vinham as companheiras Celia Sánchez e Haydée Santamaría e os enviados do Movimento na planície, Marcos ou Nicarágua, o Comandante Iglesias, hoje governdor de Las Villas e naquele tempo encarregado de ação no Santiago e Marcelo Fernández, que foi coordenador do Movimento e atualmente Vice-Presidente do Banco Nacional, como interprete por seus conhecimentos de inglês.

Aqueles dias passaram em conformidade com o protocolo tratando de demonstrar aos norte-americanos nossa força e tratamento de evitar qualquer perguntademasiado indiscreta; não sabíamos quem eram os jornalistas; porém, se realizaram as entrevistas com os três norte-americanos que responderam muito bem todas as perguntas segundo o novoespírito que tinham desenvolvido nessa vida primitiva ao nosso lado,ainda que eles não pudessem aclimatar-se a ela e não tivessem nada de comum conosco.

Naqueles dias se incorporou também uma da mais simpáticas e queridas personagens em nossa guerra revolucionária, El Vaquerito. El Vaquerito, junto com outro companheiro, nos encontrou um dia e manifestou estar mais de um mês procurando-nos, disse ser camagüeyano, de Morón, e nós, como sempre se fazia nestes casos, procedemos ao seu interrogatório e a dar-lhe um rudimento de orientação política, tarefa que frequentemente me correspondia. El Vaquerito não tinha nenhuma idéia política nem parecia ser outra coisa que um moço alegre e saudável que via tudo isto como uma maravilhosa aventura.

Como é bem sabido El Vaquerito não pode ver o fim da luta revolucionária, pois sendo chefe do pelotão suicida da coluna 8, morreu um dia antes da tomada de Santa Clara.

Por aqueles dias, maopde 1957, dois dos norte-americanos abandonaram a coluna com o jornalista Bob Taber que tinha acabado sua reportagem, e chegaram são e salvos a Guantánamo. Nós seguimos nosso lento caminho pela cume da Maestra ou suas ladeiras; fazendo contatos, explorando novas regiões e difundindo a chama revolucionária e a lenda de nossa tropa de barbudos por outras regiões da Sierra. O novo espírito se comunicava a La Maestra. Os camponeses vinham sem tanto temor a cumprimentar-nos e nós não temíamos a presença camponesa, posto que nossa força relativa tinha aumentado consideravelmente e santíamos-nos mais seguros contra qualquer surpresa do exército bastiano e mais amigos de nossos camponeses.

Próxima passagem da guerra revolucionária: Jornadas de Marcha

quarta-feira, 15 de outubro de 2008

PASSAGENS DA GUERRA REVOLUCIONÁRIA: Adquirindo o Temperamento


Contada pelo Cmte. Che Guevara

Os meses de março e abril de 1957 foram de reestruturação e aprendizagem para as tropas rebeldes. Depois de recebido o reforço à partir do lugar denominado La Derecha, nosso exército tinha uns 80 homens.

Já não sobravam fuzis à tropa; ao contrário, lhe faltavam. Estávamos em uma nova época. Tinha-se produzido uma mudança qualitativa; havia toda uma zona onde o exército inimigo tratava de não intrometer-se para não colidir conosco, embora é certo que nós tampouco demonstrávamos ainda muito interesse em colidir com eles.

Batista manifestou que não era necessário falar com Fidel ou com os insubordinados; que Fidel Castro não estava na Sierra, dizia, e que ali não havia ninguém ; portanto, não havia por quê falar "com um grupo de foragidos".

Tínhamos por aquele momentoumas figuras simpáticas que serviram para a propagandastante grandesa, quase comercial, de nosso movimento, nos Estados Unidos, e que ocasionaram-no, dois deles sobretudo, algumas inconveniências. Eram os três moços ianques que escaparam de seus pais na Base Naval de Guantánamo, e que se tinham incorporado à luta. Dois deles nunca ouviram um tiro na Sierra e, esgotados pelo clima e as privações , bastante grandes, retiraram-se levados pelo jornalista Bob Taber o outroparticipou na batalha de Uvero e depois se retirou também, doente, mas agiu em um combate. Os moços ideológicamente, não estavam preparados para uma revolução e, simplesmente, saciaram seu desejo de aventuras em nossa companhia durante alguns meses. Despedimo-los com afeto, mas também com alegria. Sobretudo eu, pessoalmente, pois em minha qualidade de médico me encarregava deles frequentemente devido a que não toleravam os rigores da vida daquele tempo.

Naqueles mesmos dias, o governo passeou, em um avião do exército, a varios milhares de metros de altura, demostrando aos jornalistas que não havia ninguém na Sierra Maestra. Foi uma curiosa operação que não convenceu ninguém e uma demonstração da maneira que utilizava o governo batistiano para enganar à opnião pública.

Próxima passagem da guerra revolucionária: Uma Entrevista Famosa

terça-feira, 14 de outubro de 2008

É inaugurada na Venezuela a Praça Manuel Marulanda








Inaugurou-se a primeira praça e monumento no continente em homenagem ao Comandante Guerrilheiro Manuel Marulanda Vélez.











As organizações que integram a Coordenadoria Continental Bolivariana na Venezuela realizaram uma homenagem póstuma ao Comandante Guerrilheiro recentemente falecido, Manuel Marulanda Vélez.

A homenagem constitui uma amostra de solidariedade do povo venezuelano ao povo colombiano, que está sendo obrigado, devido à aplicação sistemática do terrorismo de Estado, a tomar as armas para defender as causas populares, asseguraram representantes da Coordenadoria Simón Bolívar, o Partido Comunista de Venezuela, a Corrente Comunista Gustavo Machado e o Movimento 28 de Março.

Frank León, vice-presidente da Coordenadoria Simón Bolívar, expressou que é um orgulho para sua organização convocar, junto a outras organizações da região, uma homenagem a Manuel Marulanda, a quem qualificou como uma referência revolucionária.

Precisamente na sede dessa organização, o emblemático 23 de Janeiro, albergará a praça Marulanda que inaugurou-se hoje, 26, e que foi construída em largas jornadas de trabalho comunitário. O busto que encabeçará a praça já está terminado, segundo Carlos Casanueva Troncoso, Secretário Geral da CCB e será colocado ainda hoje, quando será revelado também o nome do artista que o elaborou.

Como parte da homenagem, foi lançado um livro sobre a vida e obra de Marulanda e se realizará um seminário internacional sobre o Direito dos Povos à Resistência Armada.

Roso Grimau e Santiago Palacios do Comitê Central do Partido Comunista da Venezuela manifestaram que a iniciativa da homenagem surgiu na Venezuela. Por sua parte, Palacios qualificou as FARC-EP como uma organização irmã do PCV e chamou à participação das organizações populares nas jornadas de trabalho de construção da Praça e à defesa do processo revolucionário da Venezuela.

O M-28, representado por Zenaida Tahan, afirmou que a Praça Marulanda é uma legitimização dos lutadores na Colômbia e que deve ser considerada não só como uma homenagem ao chefe insurgente, mas a todos os que na Colômbia padecem por conta do regime. Para Tahan, a luta armada na Colômbia constitui uma necessidade, enquanto na Venezuela não é necessária, por encontrar-se em meio a um processo inteiramente democrático, porque nele pode dar-se livremente o "debate necessário" sobre as formas de luta.

Sergio Jiménez, da Corrente Comunista Gustavo Machado, reiterou a necessidade das organizações revolucionárias da Venezuela estenderem sua solidariedade à República irmã e somar-se à homenagem; denunciou a violação sistemática dos direitos humanos no país granadino, não sem antes rechaçar a política guerreirista do governo paramilitar de Álvaro Uribe Vélez.

O Secretário Geral da CCB, Carlos Casanueva Troncoso, afirmou que a criação do monumento para Marulanda na Venezuela é emblemática, por acontecer em meio aos ataques do império assim como na Bolívia.


Casanueva assegurou que a CCB apóia todas as formas de luta que os povos tenham para resistir e afirmou enfaticamente que "por trás de cada membro da CCB haverá um soldado a mais para defender as causas do povo" da Bolívia, Venezuela, Colômbia e assim evitar catástrofes como a que aconteceu no Chile com o golpe de Estado ao presidente Allende.

Iván Márquez: obrigado a todos

Montanhas da Colômbia, outubro de 2008


COMUNICADO DE AGRADECIMENTO

A todos os que tornaram possível a homenagem em Caracas ao Herói insurgente da Colômbia de Bolívar -o legendário Manuel Marulanda Vélez-, nossa saudação e abraço fraternal repleto do desejo infreável da Pátria Grande e o Socialismo.

Gratidão eterna de todos os guerrilheiros e guerrilheiras das FARC, de suas instâncias de comando, às organizações políticas e sociais, às almas revolucionárias e solidárias da Nossa América que, desafiando a ira do terrorismo de Estado do governo da Colômbia -reconhecido peão do império-, tornaram possível o lançamento do livro sobre o comandante Manuel no quartel San Carlos, o florescimento em uma brigada popular em Caracas de uma praça com o digno nome de Manuel Marulanda Vélez, presidida pelo busto do comandante da guerra de guerrilhas móveis, e aos participantes do Fórum "Obra e vigência do pensamento de Manuel Marulanda Vélez".

Vocês, companheiras e companheiros, impactaram com sua homenagem e afeto o coração da guerrilheirada e nos fizeram exclamar com o Libertador Simón Bolívar que nada nos deterá se o povo nos ama.

Nosso pensamento hoje vai voando até a cubana Celia Hart, pureza solidária que quis honrar com sua presença esta homenagem ao guerrilheiro inesquecível, para defender com todos nós o direito à paz, desejo frustrado pelo infortúnio de um trágico acidente... Nossas mais sentidas condolências aos seus familiares e a todos os revolucionários.

Agora que o império norte-americano se retorce nas dores de sua mais profunda crise e que, em seu desespero, acredita que a Nossa América e os povos do terceiro mundo devem pagar pelos pratos quebrados; agora que os enganosos argumentos sobre a inviabilidade da luta armada agonizam sobre um recife do embravecido mar, permita-nos propor o dia 26 de março, dia da partida de nosso Comandante em Chefe, Manuel Marulanda Vélez, como o dia do direito universal à rebelião armada.

Desde então estamos convocando para articular a resistência dos povos contra as investidas da Casa Branca, que desde o turbulento norte se remexem como violentos presságios contra a dignidade e a independência da América de Bolívar e dos pobres do sul.

Pela Comissão Internacional das FARC, compatriota,

Iván Márquez

quinta-feira, 9 de outubro de 2008

O Escritor e o Guerrilheiro



O subcomandante Marcos revela a Gabriel García Márquez seus sonhos e paradoxos.

Cidade do México. O subcomandante Marcos chegou em 1984 à selva lacandona de Chiapas no sudeste do México, e ali viveu durante 17 anos com as comunidades indígenas tzotziles e tzeltales até 11 de março de 2000, quando a marcha que encabeçou e que cruzou meio país terminou com uma manifestação gigantesca na Praça da Constituição – mais conhecida como Zócalo – na Cidade do México.

Nesse lugar, carregado de um enorme peso histórico, o chefe do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZNL), sem nenhuma arma, tornou oficial sua decisão de fazer política pacificamente. Desde esse dia, os mexicanos têm a alma inquieta, pois sabem que, em boa medida, o destino do país depende do êxito ou do fracasso das gestões desse misterioso homem encapuzado e de um punhado de compõe seu estado maior.

Sua missão é conseguir a aprovação de uma lei de direitos para os indígenas e sentar-se, cara a cara, com o governo do presidente Vicente Fox numa mesa de negociação.

Marcos se instalou com sua gente na Escola Nacional de Antropologia e História (Enah), ao sul da cidade, cujas salas de aula improvisadas como dormitórios e recintos de reuniões se converteram no centro da atenção da opinião pública mundial, devido à importância de seus inquilinos atuais e á enxurrada de notícias de implicações definitivas geradas ali minuto a minuto.

O subcomandante dos zapatistas não havia conseguido que o Congresso lhe permitisse expor as idéias sobre a lei dos direitos indígenas diante de todos os deputados, pois a divisão de opiniões nos partidos políticos impediu que se alcançasse qualquer consenso.

Por fim, na quinta-feira, surgiu uma luz de esperança quando o Congresso aprovou, numa votação apertada, a proposta de escuta-lo. Entretanto, Marcos e Fox buscavam se êxito pôr-se de acordo sobre qual é a melhor maneira de dar o primeiro passo para iniciar um firme processo de conversações de paz entre a guerrilha e o governo.

A semana passada terminou num suspense tremendo. Antes da decisão do Congresso, os zapatistas haviam anunciado sua determinação de regressar a Chiapas por considerar que a classe política estava se fechando ao diálogo. Para detê-los, Fox respondeu com a ordem de levantar os postos de vigilância militar na zona de conflito e com o anúncio de que libertaria os guerrilheiros que ainda estão na prisão. O temor que gerara o ingresso zapatista na Cidade do México para exigir os direitos dos indígenas parecia ter sido superado pela inquietude que produzia a possibilidade de regressarem a sua terra com as mãos vazias.

Através de uma cadeia de mensagens entre amigos comuns, o subcomandante Marcos aceitou falar com os jornalistas da revista "Cambio". O encontro era às 21h30m de uma noite da semana passada. A entrada principal da Escola de Antropologia estava protegida por agentes da polícia e um grupo de estudantes, que mantêm guarda as 24 horas do dia, vigiando as salas de aula onde estão os zapatistas. Depois de atravessar os dois anéis de segurança, chegamos ao lugar da reunião, onde não havia mais que uma mesa e três cadeiras. Cinco minutos depois, Marcos chegou e falou conosco.

Sete anos depois de o Exército Zapatista de Libertação Nacional (ELZN) anunciar que um dia entraria triunfante na Cidade do México, o senhor chegou à capital e encontrou o Zócalo (praça central da capital mexicana) lotado. O que o senhor sentiu ao subir no palanque e ver aquele espetáculo?

SUBCOMANDANTE MARCOS: Seguindo a tradição zapatista de anticlímax, o pior lugar para se ver uma manifestação no Zócalo é de um palanque. Havia muito sol, tínhamos dor de cabeça e estávamos muito preocupados contando as pessoas que iam desmaiando diante de nós. Eu dizia a um companheiro, comandante Tacho, que devíamos nos apressar porque, quando começássemos a falar, não teria sobrado ninguém na praça. Não conseguia ver toda a extensão. A distância que tínhamos das pessoas, por uma questão de segurança, era também uma distância emotiva e não soubemos o que se passou no Zócalo até lermos os jornais do dia seguinte. Pensamos que foi a culminação de uma etapa, que nosso discurso, nossa palavra naquele dia foi a mais apropriada, que desconcertamos os setores que esperavam que tomaríamos o palácio ou pregaríamos uma insurreição generalizada e também os que pensavam que nosso discurso se limitaria a questão poética ou lírica. Creio que de uma forma ou de outra o EZLN estava falando no Zócalo no dia 11 de março, mas não 2001. Estava falando de algo que ainda está para acontecer: esse sentimento que significa que a derrota definitiva do racismo se converterá em política educativa, num sentimento de toda a sociedade mexicana. Como dizemos os militares, a batalha estava ganha, mais ainda havia combates a travar. Creio, finalmente, que o Zócalo do dia 11 de março nos dizia que fora acertado deixar as armas de lado, que a aposta numa mobilização pacífica era correta e dava resultados. Falta que o estado mexicano entenda isso.

O senhor utilizou a expressão "como dizemos os militares". Para nós, colombianos, que temos ouvido nossa guerrilha, seu discurso soa como militar. O quanto de militar há no senhor e no seu movimento e como descreve a guerra em que tem lutado?

MARCOS: Nossa estrutura é militar. O subcomandante Marcos é o chefe militar de um exército. Em todo caso é um exército diferente porque o que estamos propondo é deixarmos de ser um exército. O militar é uma pessoa absurda que tem que recorrer às armas para poder convencer os outros de que sua razão é que deve prevalecer. Nesse sentido, o movimento não tem futuro se seu futuro for militar. Ele fracassará como opção de idéias, de posição, de posição frente ao mundo. E o pior que poderia acontecer, além disso, seria chegar ao poder e se instalar como um exército revolucionário. O que seria um êxito para uma organização político-militar nas décadas de 60 e 70, que surgiu com movimentos de libertação nacional, para nós seria um fracasso. Vimos que essas vitórias eram derrotas ocultas por trás de sua própria máscara.

O que estava pendente sempre era o lugar das pessoas, da sociedade civil, do povo. É uma disputa entre duas hegemonias. Um poder opressor que, de cima, decide pela sociedade e um grupo de iluminados que decide conduzir o país a um bom rumo, tira aquele outro grupo do poder, toma o poder, e também decide pela sociedade. Para nós é uma luta de hegemonias e sempre há uma boa e uma má. Para o resto da sociedade, as coisas estão mudando no que é fundamental. Chega em um momento em que o ELZN é ultrapassado pelo que é zapatismo. O E da sigla fica diminuído, com as mão amarradas, de tal forma que para nós não apenas não significa um peso nos mobilizarmos sem armas, como é também um alívio. A farda pesa menos que antes, assim como a parafernália militar que necessariamente leva um grupo armado na hora do diálogo.

O Senhor parece ter diferenças em relação à esquerda tradicional também quanto aos setores sociais que esses grupos representam.

MARCOS: Vou apontar duas ausências na esquerda latino-americana revolucionária. Uma delas são os povos indígenas e a outra são os grupos supostamente minoritários. Esses setores são esquecidos nos discursos da esquerda latino-americana das últimas décadas e na presente. Também foi posto o marco teórico do que então era o marxismo-leninismo: prescindir desses setores e vê-los como parte do processo que deve ser eliminado. O homossexual, por exemplo, é suspeito de traição, um elemento nocivo para o movimento e para o Estado socialista. E o índio é um elemento de atraso que impede as forças produtivas... blá, blá, blá. Isso corresponde a eliminar esses setores, alguns em centros de reclusão ou reeducação, e outros com sua assimilação do processo produtivo e sua transformação em mão de obra qualificada. Proletários, em outras palavras.

Os guerrilheiros costumam falar em nome da maioria. É surpreendente que o senhor fale em nome das minorias, quando poderia faze-lo em nome do povo pobre e explorado. Por que faz isso?

MARCOS: Toda a vanguarda supõe que represente a maioria. No nosso caso, achamos que isso é falso e que, no melhor dos casos, não vai além de um desejo. No pior, é um claro exercício de usurpação. Na hora em que se põe em jogo as forças sociais, nos damos conta de que a vanguarda não é vanguarda e os representantes não se reconhecem nela. Quando o Exército Zapatista de Libertação Nacional renuncia a vanguarda, está reconhecendo seu horizonte real. Acreditar que podemos falar por aqueles além de nós mesmos é masturbação política. Estamos tratando de ser honestos com nós mesmos e alguém pode pensar que é bondade. Não é. Podemos ser inclusive cínicos e dizer que só representamos as comunidades indígenas zapatistas do sudeste mexicano. Mas nosso discurso chegou ao ouvido de muito mais gente. Até aí chegamos. Não mais que isso.

Os discursos da marcha zapatista foram surgindo a cada povoado até a chegada à Cidade do México ou o senhor os planejou desde o começo, sendo que o último não precisava ser necessariamente mais forte?

MARCOS: Há a versão oficial e a real. A oficial é que percebemos agora que tínhamos que fazer. A real é que o discurso foi sendo construído nestes sete anos. Chega um momento em que o zapatismo do EZLN é ultrapassado por muitas coisas. Estamos respondendo não ao que éramos antes de 1994 e tampouco ao que fomos nos primeiros dias de 94, quando estávamos combatendo, mas sentimos e adquirimos uma série de compromissos éticos ao longo desses sete anos. O que aconteceu é que pretendíamos levar um arado, o que finalmente não conseguimos na hora, mas bastou a sola dos pés tocando a terra enquanto caminhávamos para que brotasse o que queríamos. Em cada praça fomos dizendo: "Não viemos para dirigi-los, não viemos para dizer-lhes o que fazer, mas viemos para pedir-lhes ajuda." Ainda assim, ao longo da marcha, ouvimos reclamações que vinham desde antes da revolução mexicana, à espera de alguém que resolvesse o problema. Se pudéssemos resumir o discurso da marcha zapatista, seria: Ninguém fará por nós". É preciso mudar as formas de organização e de fazer política para que isso seja possível. Quando dizemos não aos líderes, no fundo também dizemos não a nós mesmos.

O senhor e os zapatistas estão no auge do seu prestígio; acaba de cair o PRI no México; há um projeto de lei no Congresso que cria um estatuto indígena e as negociações que o senhor reivindica podem começar. Como vê esse panorama?

MARCOS: Como uma luta entre um relógio de ponto, que marca a chegada dos empregados a uma empresa, e que é o relógio de Fox, e o nosso relógio de areia. A disputa é fazer com que nos acomodemos ao relógio de ponto e Fox ao de areia. Mas não vai ser uma coisa nem outra. Temos que entender, ele e nós, que temos que construir outro relógio de comum acordo, para marcar o ritmo do processo de diálogo e, finalmente, a paz. Estamos no terreno deles, onde a classe política está no lugar em que se desenvolveu. Estamos numa organização perfeitamente ineficaz na hora de fazer política. Somos trôpegos, balbuciantes e temos vontade. Do outro lado estão os que manejam bem esses códigos. É outra vez uma disputa e acho, de novo, que não será nem uma coisa nem outra. Quando fizemos a guerra, tivemos que desafiar o governo, mas todo o Estado mexicano. Não há uma mesa para nos sentarmos e conversarmos com o governo. Temos que construí-la. Temos que convencer o governo de que deve fazer essa mesa, que deve sentar-se e que vai ganhar. E que, se não fizer isso, vai perder.

Quem deve estar nessa mesa?

MARCOS: De um lado, o governo e de outro, nós.

Fox não está aceitando de fato essa mesa quando diz que quer falar com o senhor e que o recebe no lugar que o senhor escolher?

MARCOS: O que ele está dizendo é que quer sua parte da torta de publicidade, porque não converteu isso num processo de diálogo e negociação, mas numa corrida de popularidade. O que Fox quer é conseguir a foto para garantir sua presença nos meios de comunicação. Não só constrói estes processos com fotos, mas dando sinais, sentando-se e dedicando-se a isto. Estamos dispostos a falar com Fox, se ele se responsabilizar pela negociação até o fim.

Neste processo tão longo, o senhor vai continuar assim, vestido de guerrilheiro em um recinto universitário? Como é o seu dia?

MARCOS: Eu me levanto, dou entrevistas e já chega a hora de voltar a dormir (risos). Fazendo interlocução com vários destes grupos que mencionei. Um monte de mundos ou submundos – depende de como estejam perseguidos ou marginalizados – que o discurso zapatista tem alcançado. O que estamos fazendo é ter duas mesas e uma daquelas giratórias de rodilhas que existiam quando eu era jovem. Estamos neste momento numa mesa com o Congresso e em outra com as comunidades da Cidade do México. Mas nos preocupa que o Congresso nos esteja dando o tratamento que dá a qualquer um que pede para ser atendido e que digam para esperar porque estão cuidando de outros assuntos. Se for assim, são muitas as coisas a serem lastimadas, pois não está em jogo apenas reconhecimento dos direitos indígenas. Seria um mau sinal porque muitos seriam atingidos. As pessoas não vão aceitar que voltem o olhar para elas apenas nas eleições. Além disso, seria um sinal para os grupos políticos e militares mais radicais, que cresceram com a bandeira de que a negociação é capenga.

O senhor disse que havia cadeiras giratórias quando era jovem. Quantos anos tem?

MARCOS: Tenho 518 anos... (risos).

O diálogo que o senhor propõe busca a criação de novos mecanismos de participação popular para a tomada de decisões do governo ou está atrás de decisões do governo que considera necessária para o país?

MARCOS: O diálogo significa simplesmente chegar a um acordo sobre as regras para que a disputa que acontece entre elas e nós se dê em um outro terreno. O que está na mesa de diálogo não é o modelo econômico. É algo que Vicente Fox tem que entender. Nós não vamos nos tornar forxitas à mesa de diálogo. O que a mesa tem que construir é um ambiente para que esta balaclava (a máscara que cobre o seu rosto) saia com dignidade e que nem eu nem ninguém tenha que regressar à parafernália militar.

Sua indumentária é estranha: um lenço puído amarrado no pescoço e um gorro rasgado. Mas às vezes leva uma lanterna que aqui não é necessária, um aparelho de comunicação que parece muito sofisticado e tem um relógio em cada pulso. São símbolos? O que significa isto?

MARCOS: A lanterna é porque nos meteram num buraco onde não há luz e o rádio é para que meus assessores de imagem ditem as respostas às perguntas dos jornalistas. Não, sério. Este é um walkie talkie ligado à segurança e à nossa gente na selva para que se comuniquem se houver problemas. Temos recebido várias ameaças de morte. O lenço era vermelho e novo quando tomamos San Cristóbal de lãs Casas há sete anos. E o gorro foi com o que cheguei à selva lacandona há 18 anos. Com um relógio, cheguei à selva. O outro é de quando começou o cessar-fogo. Quando as horas coincidirem, significa que acabou o zapatismo como exército e que seguem outra etapa, outro relógio, outro tempo.

Em meio a todos esses problemas, o senhor ainda tem tempo para ler?

MARCOS: Claro. O que fazemos? Nos exércitos antes, o militar aproveitava o tempo para limpar sua arma. No nosso caso, como nossas armas são as palavras, temos que estar com o nosso arsenal o tempo todo.

Tudo o que o senhor diz e a forma como diz demonstram uma formação literária muito séria e muito antiga. Como ela foi construída e de onde saiu?

MARCOS: Tem a ver com nossa infância. Em nossa família, a palavra tinha um valor muito especial. A forma de ver o mundo era através da linguagem. Não aprendemos a ler na escola, mas lendo os jornais. Meu pai e minha mãe nos davam logo livros que permitiam enxergar as coisas. De uma ou de outra forma, adquirimos a consciência da linguagem não como uma forma de comunicar, mas de construir algo. Como se fosse um prazer, mais do que um dever. Quando vem a etapa das catacumbas, para os intelectuais burgueses a palavra não é o mais valorizado, fica relegada a um segundo plano. Mas, quando chegamos às comunidades indígenas, a linguagem chega como uma catapulta. Você se dá conta de que te faltam palavras para expressar muitas coisas e isso obriga a um trabalho sobre a linguagem; voltar uma e outra vez sobre as palavras para armá-las e desarma-las.

Podemos falar de sua família?

MARCOS: Era uma família de classe média. O pai, chefe de família, era professor de escola rural na época do cardenismo, quando, como ele dizia, cortavam as orelhas dos professores acusados de comunistas. Minha mãe, também professora rural, finalmente muda de lugar e se faz uma família de classe média. Quero dizer que era uma família sem qualquer dificuldade. Tudo isto na zona rural, onde o horizonte cultural são as páginas sociais dos jornais. O mundo de fora ou o grande mundo era a Cidade do México e suas livrarias porque isso era o grande atrativo para vir para cá. Às vezes havia feira do livro nas zonas rurais e era quando podíamos conseguir algo, García Márquez, Fuentes, Monsiváis, Vargas Llosa (independentemente de como pense), para mencionar alguns dos grandes nomes que me chegaram por meus pais. "Cem anos de solidão" era para explicar o que era o interior de então. "A morte de Artemio Cruz", o que tinha acontecido na revolução. "Dias de guardar", o que estava acontecendo na classe média. Estávamos saindo para o mundo da mesma forma como estávamos saindo para a literatura. Isto marcou. Não víamos o mundo através das notícias de telex, mas través de um romance, um ensaio, um poema.

Onde entra "Dom Quixote" em meio a todas essas leituras?

MARCOS: Deram-me um livro de presente quando completei 12 anos. Lindo, de capa dura. Era "Dom Quixote de la Mancha". Eu já tinha lido, mas nessas edições juvenis. Era um livro caro, um presente muito especial. Shakespeare foi que veio depois. Mas se pudesse pôr na ordem, diria que em literatura primeiro veio o que se chamou de boom latino-americano, depois Cervantes, depois García Lorca, e aí veio uma etapa de poesia. De forma que o senhor (aponta para García Márquez) é co-responsável por tudo isso.

Os existencialistas e Sartre passaram por aí?

MARCOS: Não. Chegamos tarde a tudo isso. À literatura existencial e antes dela à literatura revolucionária, chegamos já muito deteriorados, como diriam os ortodoxos. De modo que Marx e Engels entramos muito viciados pela literatura, seu sarcasmo e seu humor.

Não havia leituras de teoria política?

MARCOS: Na primeira etapa, não. Do A, B, C, D passamos à literatura e daí aos textos teóricos e políticos até entrar na preparatória.

Seus companheiros acreditavam que o senhor era ou podia ser comunista?

MARCOS: Não, acho que não. Talvez o máximo que chegaram a dizer é que eu era um rabanete vermelho por fora e branco por dentro.

O que está lendo agora?

MARCOS: "Dom Quixote" é o que está na minha cabeceira. Regularmente carrego "O romanceiro gitano" de García Lorca. "Dom Quixote" é o melhor livro de teoria política, seguido de "Hamlet" e "Machets". Não há melhor forma de se entender um sistema político mexicano em sua parte trágica e em sua parte cômica. "Hamlet", "Macbeth" e "Dom Quixote". Melhor do que qualquer coluna de análise política.

O senhor escreve à mão ou num computador?

MARCOS: Em computador. Somente nesta marcha é que tive de escrever muito à mão porque não havia tempo de trabalhar. Faço um rascunho, depois outro e outro. Parece brincadeira, mas é lá pelo sétimo que sai.

Que livro está escrevendo?

MARCOS: Estava tentando escrever um despropósito, que é tentar explicar nós mesmos, que é quase impossível. O que temos que contar é o paradoxo que somos. Por que um exército revolucionário não pensa em tomar o poder, por que um exército não combate se este é o seu trabalho. Todos os paradoxos que temos enfrentado: que crescemos, que nos tornamos fortes em um setor que está completamente distanciado dos canais culturais.

Se todo mundo sabe quem é o senhor, para que a máscara?

MARCOS: Um pouco de charme. Não sabem quem sou, mas também não importa. O que está em jogo aqui é o que é e não o que foi o subcomandante Marcos.